A perda de um farol moral
Com a morte de Vargas Llosa, a literatura perde uma das vozes mais corajosas na defesa da liberdade e da dignidade humana
O mundo – e a América Latina em especial – perdeu recentemente um de seus maiores intelectuais. A morte de Mario Vargas Llosa encerra uma era em que a literatura não apenas narrava o mundo, mas o confrontava.
Escritor monumental, voz pública, crítico implacável do autoritarismo, Llosa personificou como poucos o compromisso ético com a autonomia individual. E fez isso não apenas com a pena, mas também com a própria biografia.
Foi opositor convicto de toda forma de opressão. Enfrentou, ainda jovem, a ditadura militar peruana que tanto denunciou em suas obras e artigos. Décadas depois, teve a coragem de disputar a presidência de seu país contra o autoritarismo reencarnado — perdendo nas urnas, em 1990, para Alberto Fujimori, mas vencendo na estatura moral. Mais tarde, não hesitou em declarar sua oposição a Keiko Fujimori, filha do ex-ditador, reafirmando que coerência não se negocia.
Li Vargas Llosa muito jovem. E muito do que penso sobre responsabilidade, cultura e civilização foi moldado por suas ideias e sua lucidez. “Em que momento o Peru se f...?” — é com essa pergunta, formulada pelo personagem Zavalita em “Conversa na Catedral”, que ele inaugura uma de suas obras mais densas e simbólicas. Llosa não procurava respostas fáceis, mas ousava perguntar onde tantos se calavam. Sua literatura era uma forma de resistência — estética, sim, mas sobretudo moral.
Para além da escrita literária inconfundível, sua produção ensaística revelou um pensador de rara coerência. Em “A Civilização do Espetáculo”, descreveu com precisão a transformação da cultura em espetáculo, o culto ao vazio e a derrocada das referências intelectuais em nossa sociedade. Foi um libelo contra a mediocridade e a rendição aos modismos do tempo — um livro tão atual quanto desconfortável.
Em certa entrevista, afirmou com veemência: “Prefiro o erro em liberdade ao acerto em tirania.” Essa foi a bússola que guiou sua trajetória — da juventude literária às tribunas internacionais. Por esse compromisso, mesmo nas divergências, manteve o respeito dos adversários e o afeto dos leitores. Mas sem jamais se deixar tomar pela omissão: pensava e dizia o que pensava. Llosa ousou ser impopular. E por isso se tornou imprescindível.
Sua grandiosidade foi reconhecida muito além da América Latina. Recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 2010 — distinção máxima para um escritor — coroando uma trajetória que soube unir rigor estético, coragem intelectual e fé no indivíduo. Em 2021, tornou-se o primeiro autor de língua espanhola a integrar a Academia sa de Letras, reconhecimento que simbolizou sua projeção global.
Llosa permanece como farol para todos que ainda creem na liberdade como princípio — e não como retórica. Sua ausência deixa um silêncio grave no debate público — especialmente neste tempo órfão de referências morais, em que o barulho das redes obscurece a profundidade do pensamento. Para nós, jovens que resistem ao cinismo da época, sua vida e obra são legado — e desafio.
Que saibamos, em sua memória, continuar livres. Mesmo quando isso significar sermos solitários. Como ele nos ensinou.
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